sexta-feira, 19 de abril de 2013



A obrigação da Felicidade... 




    Diante de algumas coisas que tenho visto, percebo algo violento e perverso que tem se instalado inocentemente nas relações sociais hodiernas: A obrigação em ser feliz o tempo todo. A sociedade está impondo aos outros essa prática de forma sutil e cruel, seja nas redes sociais, com fotos 'alegres' de supostas celebridades (no mundo do espetáculo muitos sonham em ser uma), na televisão com os programas de risos gratuitos, nos 'livros da felicidade' no ranking da semana: 'As 30 maneiras de ser feliz o tempo todo', 'Como perder a tristeza em uma semana com cremes da felicidade" ou 'As pílulas do dia seguinte da tristeza’. 
    Com a "medicalização do cotidiano" ninguém mais quer digerir as coisas que não faz bem. Com essa prática perversa, buscamos entorpecer os sentidos através das 'pílulas da felicidade'. Como entender esse complexo processo, não sei. Sei que questiono os processos que se instauram de forma naturalizada. Compartilho de algumas discussões de Viviane Mosé e penso sobre a falta da digestão da dor, da solidão, da tristeza que somos fabricados. O estômago das pessoas está ferido pela gastrite consumista que nos impõe a obrigação eterna da felicidade, estando ferido o estômago, torna-se difícil o processo da digestão emocional. Nesse sentido, não digerir a tristeza como um processo de algo que não está bem em nós é algo prejudicial porque não nos coloca de frente dos problemas da vida. Somos aceitos e até valorizados para entorpecer os sentidos no que se refere a medicamentos. Não quero dizer que estes não sejam importantes, mas que vivemos uma espécie de ‘medicalização’ sobre tudo isso é fato. Crianças sendo medicadas de forma banalizada por não ser o modelo, a referência que a escola exige ou aceita nos seus espaços. (são tantos transtornos nomeados e categorizados). Se se no século XIX vivemos a psiquiatrização do sujeito desviante e louco como nos reporta Foucault em “Os Anormais”, no século XXI vivemos a medicalização do cotidiano, em que entorpecer os sentidos torna-se capital para o não sofrimento, para a não reflexão da dor.
     Precisamos mostrar às nossas crianças e aos adultos que a solidão também não é algo ruim e que ser feliz o tempo todo é impossível porque isso não é humano, é desumano e tormentoso. Enquanto isso, livros e livros de 'autoajuda' abarrotam as bibliotecas e as nossas mentes (e os bolsos dos deuses do 'show business'). É uma máquina de fazer dinheiro que enriquece poucos no mundo contemporâneo, e nessa fatia, a maior parte do pão será para os donos do capital: indústrias farmacêuticas, mídias, celebridades, e alguns juízes do saber detentores do poder de “vida e morte” numa concepção foucaultiana do termo.
   Assim, temos o tratamento da felicidade vendida em todas as camadas sociais. Temos crianças medicalizadas que se comportam como zumbis que não pensam, só comem e dormem e são autômatos. Quando penso sobre os 'deuses da felicidade' e a felicidade acessível, concluo o quanto estamos inseguros com a dor, a solidão, a reflexão e a digestão dos processos de tristeza que nos assolam o cotidiano. E nesse jogo de insegurança e capitalismo, infelizmente, na maioria das vezes os autores do 'mundo dos negócios da felicidade' não têm base teórica para empreendimentos e discussões sobre os processos da vida no que tange à dor, às angústias e medos; repetem e recortam 'dizeres de verdade' que somados, tornam-se compêndios da felicidade. É o 'pega ali e junta daqui' de fórmulas, de doutrinas e supostas teorias, que no final, dão certo e enriquecem poucos. 
     Numa sociedade que raramente se digerem as emoções e que há a promoção da 'medicalização compulsória’, ou a 'psiquiatrização das emoções', dificilmente teremos capacidade de entender os nossos processos existenciais, porque as perdas, as mortes, as vidas, os ganhos, as obrigações, os enlaces são processos da existência que não podemos entorpecer e fugir. Sendo assim, esses processos existenciais  têm as suas idas e vindas que nos constituem como seres humanos que somos. 
      Portanto, assim como a "Morte" de Saramago, no livro "As intermitências da Morte”, que num dado momento cansa de matar as pessoas e resolve descansar desse mundo, a felicidade imposta e medicalizada também poderá chegar nessa revolta existencial e não querer mais pessoas 'felizes' de forma gratuita como se tem construído. Pensemos sobre isso, pois a obrigação em ser feliz o tempo todo pode ser sofrível porque nos vicia e impõem obrigações que nunca alcançaremos sobre nós e os outros (o idealizado é ideia fabricada e normatizada pela sociedade). Nesse sentido, é necessário que retomemos as rédeas de nossas vidas para que possamos dirigi-las sem medo da solidão, da dor, da angústia, da morte. É importante que curemos o nosso estômago das gastrites para digerirmos melhor as experiências que nos batem à porta. Então, já tornando prescritivo, encerro essa reflexão antes que tenha de rir e não conseguir parar o riso porque obrigaram-me a consumir as receitas da felicidade. Vivamos a oportunidade de ser humano sem pressões dolorosas para adequar-se o tempo todo para a felicidade!

Texto publicado no jornal Diário da Manhã no dia 06/05/13  http://www.dm.com.br/jornal/#!/view?e=20130507&p=21

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