Dia
da Consciência Negra e a Educação
O mês de novembro é
muito especial para nós brasileiros, porque é o calendário que homenageia o
nosso Zumbi dos Palmares, homem que deixou a sua marca de luta e coragem pelo
seu povo há exatamente 318 anos. O seu legado deixado através da sua morte
consolida o questionamento da resistência do negro e a escravidão no Brasil
Colonial em defesa da República de Palmares. A partir dessa luta travada entre
o branco subalternizador de outrora, faz-nos enxergar a diversidade e a
lealdade de um povo como conquistas de inclusão do diferente.
Como educador e
interessado por alguns tratados teóricos que versam sobre a diversidade humana
e a escola, teço algumas reflexões aqui com o objetivo de pensar a relação
dessa data (20 de novembro-Dia da Consciência Negra), com a escola que temos e
a sociedade que queremos. Para isso, arrola-se a problematização acerca de quando
e como o negro foi e ainda é ridicularizado/excluído a partir da discriminação
que fazem parte da agenda social cotidiana? Por que a exclusão em relação ao
negro se dá através do racismo de maneira silenciosa (invisível) e
institucional (explícito e permitido pelo poder público e sociedade como um
todo)? Para tentar responder essas perguntas e alcançar o intuito proposto,
movimento essa escrita de certo ponto de vista histórico para depois me deslocar
na educação indo de encontro ao tratamento do negro em contexto escolar/social.
De acordo com fontes históricas,
foram quarenta escravos que fundaram o Quilombo dos Palmares. Com a organização
dos foragidos de um engenho de Pernambuco, em pouco tempo esse Quilombo tornou-se
uma cidade, devido a fuga de outros escravos que não aceitavam a fundição de
ferro imposta pelos “senhores brancos”. Após certo tempo, o Quilombo de Palmares,
agora governado pelo rei negro Ganga-Zumba (tio de Zumbi), foi invadido por
bandeirantes. Nesse interim, índios e brancos que fugiram , formaram os mocambos,
isto é, uma espécie de pequenas vilas. Com a chegada desses bandeirantes,
travou-se uma chacina em que foram mortos vários habitantes degolados, dentre
estes, crianças, no entanto, uma delas se destacaria das demais mortas, o
menino Francisco que fora dado pelos invasores ao padre da vila de Recife, o
então senhor Antônio Melo, que depois veio a batizar o menino.
Com a educação
esmerada, dada pelo clérigo, aprendera a ler e escrever e teve noções de latim,
sendo coroinha, logo em seguida, após iniciar estudos bíblicos. Essa atitude do
religioso em relação ao menino negro incomodara a todos que não concordavam que
o coroinha fosse tratado como um branco e não um servo como todas as outras
crianças negras. Aos quinze anos, regressa à sua terra, que até então oferecia
a igualdade identitária que tanto sentira falta, pois o tratamento dado pelos
brancos à sua identidade era sempre hostil devido a sua cor. Em seguida à sua
volta, fora adotado por outra família e com exímio conhecimento dado pelo
pároco, se destaca dentre os demais irmãos, e com dezessete anos torna-se
general de armas. Com a morte de seu tio, o rei Ganga-Zumba, dada
posteriormente ao tratado feito com os “brancos do engenho”, Zumbi assume o
posto e luta a favor de seu povo, defendendo a desopressão e a liberdade para o
negro. Infelizmente, aos 20 de novembro de 1695, depois da traição de seu
comandante Antônio Soares, que, em troca da sua liberdade, delata o menino de
outrora Francisco, foi torturado, tendo a sua cabeça decapitada e deposta em
praça pública na cidade de Recife até a final decomposição, como se num ato
simbólico demonstrasse à sociedade a fragilidade da sua “imortalidade”.
Contrariando o mito de
herói de Zumbi, de acordo com alguns autores, o rei Ganga-Zumba ao pactuar com
o governo da capitania de Pernambuco, Pedro de Almeida, assina a sua sentença
de morte sendo envenenado por partidários de Zumbi. Esse pacto seria aceito
pelo governo desde que os moradores do Quilombo se sujeitassem à coroa
Portuguesa. Zumbi não satisfeito com a forma de governo do rei institui um
grupo contra o seu tio. Para alguns historiadores, o “deus da Guerra” ou
“Fantasma Imortal”, como alguns traduzem, não foi tão herói como se diz, mas um
rei déspota que instituía até execução quando um escravo fugia do Quilombo.
Nesse sentido, o sistema de escravos era muito parecido ao sistema branco de
escravidão da Europa da Idade Média. No livro “História do Quilombo no Brasil”,
organizado pelos professores-pesquisadores pós-doutores João José Reis e Flávio
dos Santos Gomes, se evidencia a necessidade de se rever o mito de Palmares sob
“novas perspectivas”. Para Reis, a historiografia construiu uma história
pautada pelo heroísmo superdimensionado negligenciando contribuições
importantes de Ganga-Zumba. Em convergência a essa ideia, Gomes acredita que
houve uma supervalorização do Zumbi que o movimento negro se apropriou. De tal
modo, essa foi a vida de Zumbi, cheia de lutas, agruras e contradições que o
tornaram o “homem Imortal”. Opiniões à parte, sigamos em nossa reflexão em
relação à inserção do negro e o contexto escolar.
Segundo dados do
Programa das Nações Unidas para Desenvolvimento (PNUD/2005), o Brasil se
desenvolveu excluindo a população negra na medida em que não contemplou nesse
processo a inserção do negro em relação ao branco na sociedade. Para Hédio
Silva Junior em seu livro “Discriminação racial nas escolas: entre a lei e as
práticas sociais-UNESCO, 2002”, o direito à educação para os não brancos (não
pertencentes à elite) só viria no ano de 1971 com a lei 5.692 de 11 de agosto
de 1971, ou seja, quase um século depois, começava a se pensar numa suposta
democratização que não foi acompanhada
de uma preparação do magistério para
lidar com a heterogeneidade. Diante dessa constatação, leva-nos a crer que o
nosso modelo de educação ainda é pautada por valores da “classe média branca”
uma vez que o branco é (auto)representado como o modelo ideal que detém posição
de privilégios legitimados durante séculos em relação ao negro.
Já a professora-pesquisadora
pós-doutora Fúlvia Rosemberg em sua pesquisa “Raça e Educação inicial-1991”,
afirma que as oportunidades de ensino para as crianças negras são ainda de pior
qualidade, isto é, o pertencimento racial ainda é um fator excludente dos
nossos alunos e alunas que anseiam desestruturar as desigualdades sociais e
econômicas. Embora a pesquisa seja publicada no ano de 1991, ela converge com a
opinião dada pelo professor titular da USP, doutor Kabengele Munanga em
entrevista à Carta Capital no ano de 2012. Segundo ele, embora existam as leis
10.639 e 11.645 que tornam obrigatório o ensino da cultura, história dos povos
indígenas e negros no Brasil, a nossa educação ainda é pautada pelo viés
eurocêntrico, ou seja, a nossa educação é eurocêntrica, pois os docentes
receberam uma educação também eurocêntrica. Dessa maneira, necessitamos formar
educadores que abraçam a diversidade humana, para que assim, tenhamos um espaço
que contribua para a sociedade menos preconceituosa.
Como educador, anseio
que as nossas escolas não privilegiem somente o lugar e a voz do “branco” em
que os matizes são negligenciados por causa de crenças e valores arraigados historicamente
no hegemônico e no institucionalizado modelo branco, hetero(normativo) e europeu. Não aceito que as vozes dos nossos
alunos e alunas negros continuem sendo abafadas pela prática silenciosa da
discriminação racial. Para que essas
práticas perversas não sejam aceitas pela sociedade, penso que é urgente o
debate da escola em relação à hierarquização das identidades que legitima
somente modelos privilegiados da sociedade, muitas vezes reiterados nos livros
didáticos, na mídia, na publicidade, nas novelas, nas igrejas, por exemplo. Os
estudos de África são debatidos sob que viés? Qual a intenção de (re)contar
essa história sob prismas distintos os
nossos docentes têm?
A escola não pode
favorecer uma identidade em detrimento de outra, esse definitivamente não é o
seu papel. A instituição escolar como um lugar que perpetua e veicula a
tradição não deve privilegiar uma religiosidade em relação à outra, pelo
contrário, essa tradição deve ser questionada. Acredito que, em vez de alguns
professores e gestores perpetuarem uma religião pautada pela ótica cristã, quer
seja nos momentos de orações (o Estado não é laico?) e/ou nas aulas de ensino
religioso, que possam promover a reflexão e a inserção também das outras religiosidades,
sobretudo, as de matrizes africanas. Afinal, não vejo nas escolas que percorro
a aceitação da religião diferente da cristã. Pelo contrário, ainda percebe-se
que o negro é lembrado em sua cultura, história, religiosidade somente em datas
pedagógicas. É nesse momento que o excêntrico torna-se o centro, somente nessa
data. O que adianta o professor e a professora, o gestor ou a gestora abraçar a
data da Consciência Negra, como um momento de “espetacularizar” a figura do
negro nos murais e recintos escolares e excluí-lo das práticas sociais que circundam
a lógica cotidiana escolar? Será que no dia a dia das nossas escolas trazemos a
reflexão da religiosidade africana do ponto de vista que valoriza as
ritualidades presentes nos terreiros? Será que se discute a importância de se questionar
os significados negativos em relação à macumba, aos orixás e outras práticas
diferentes do nosso ideal cristão? Penso que não, não se promovem as
discussões, pois as pesquisas estão presentes em diferentes campos do saber para
nos dar conta desses resultados.
Portanto, encerro essa
escrita por ora, com o anseio de que o mês de novembro e a data 20 de novembro,
dia da Consciência Negra não seja somente um momento pedagógico descontextualizado
que, infelizmente, algumas escolas teimam em realizar ou que a sociedade
supostamente abraça para ser politicamente correta. Ambiciono que se possa
refletir na sociedade brasileira o que é a diversidade humana para que assim estejamos
dispostos a desestabilizar o edifício do instituído como modelo “normal” que
anseia colocar o outro no “esquadro”. Igualmente, espero que a coragem de Zumbi
dos Palmares e de Ganga-Zumba espaja sobre todas as pessoas que ainda
hierarquizam e subalternizam a diferença do outro em relação a si. Que possamos
refletir sobre o momento de arbitrariedade e dificuldade que muitos da
sociedade e do mundo têm em aceitar aquele que é diferente. Viva a Consciência
Negra, viva Zumbi dos Palmares e Ganga-Zumba!