As instituições sociais em diferentes contextos podem regular a vida de muitos a partir do controle de seus corpos, dos seus dizeres, dos seus saberes e dos seus fazeres. As técnicas para esse controle dão-se de forma que às vezes passa despercebido pela maioria da parcela da sociedade porque são simbólicos e/ou escondidos do público. Assim, para pensar esse domínio, questionamos de que forma podemos tornar invisíveis os nossos semelhantes a partir de técnicas que impõe uma (a)normalidade? Legitimar um lugar social tido como “normal”, não seria excluir o lugar do outro considerado como o não normal?
A loucura é
algo que mexe com a ‘razão’ desde há muitos anos. Sob diferentes compreensões e
posições de saberes, percebemos que esta foi objeto de misticismo e controle.
Para que pudesse existir no discurso do confinamento e da cura foi necessária a
interdição de uma doença que, desde muito tempo, foi entendida como maldição e
sinônimo de exclusão: a “lepra”. De
acordo com Foucault em “A História da Loucura na Idade Clássica”, ao final
da Idade Média, início do século XV, o objeto de confinamento e controle torna-se
vazio porque a figura do “leproso” desaparece.
Para o pensador francês, a loucura passa a ser o objeto de fascínio e
atração para o homem ocidental a partir do final do século XV. Isto é, a
loucura, segundo nos adverte o francês não é somente algo ligado a assombrações
e aos mistérios do mundo, mas, alguma coisa com uma estreita relação do homem
consigo mesmo, seja através de seus sonhos, ilusões e fraquezas. A “lepra” como
algo não atraente, e por isso, ‘maldita’ (pela Igreja), tinha de morrer e
deixar de ser policiada (e existir) no discurso para emergir outros fascínios
úteis para o confinamento.
Em meados do século XVII a loucura passa a
ser ligada com o confinamento, já que antes disso, no século XVI, a loucura era
somente objeto de reflexão crítica. Deste modo, a loucura passa a ser
compreendida somente em relação à razão, como referência de recusa em que uma
fundamenta a outra. Contudo, esse confinamento não se dá pelo discurso de poder
médico de cura (que nascerá no século XIX), mas, pelo poder dado pelo
semijurídico que, além dos tribunais, julga e executa esse confinamento. Assim,
seguindo as rotas foucaultianas, percebemos que o louco antes tido como algo
sagrado pela Idade Média passa a ser algo passível de exclusão, uma vez que o
Estado substitui a Igreja. A miséria do louco era tida como algo místico pela
caridade medieval da Igreja porque este participava dos obscuros poderes da
miséria. Podemos inferir que o louco personificado na miséria deixa de ser
místico e transforma-se em obstáculo para o ‘progresso’ do Estado. Portanto, a
experiência do louco é deixada pela santificação (da Igreja) e passa a ser uma
concepção moral condenável.
O internamento no século XVIII começa a estar
em crise porque não está ligado ao econômico e social. No final do século XVIII
a internação como foi proposta nos séculos XVII não era válida e por isso era
posta em questionamento. Para as estruturas econômicas que estavam emergindo
(com o nascimento da indústria) esse ‘pobre’ e ‘louco’ tinha de ser jogado à
sociedade. Ou seja, como mão de obra barata não podia estar à margem. Logo,
para a produção de riquezas esses pobres internados seriam importantes para o
progresso das nações. Assim, não seria eficaz a internação da população pobre,
porque essa população deveria estar em convívio nos espaços sociais (produzindo
lucros). Nesse sentido, a pobreza deveria
ser colocada à disposição da sociedade através da liberação do internamento. O
que compreendemos até aqui é que os discursos proferidos por instituições de
poder podem regular a vida de quem permanece no público e no privado. Nesse
momento do século XVIII os pobres são necessários, por isso estão no espaço
público, porque são produtivos. No século XIX, os pobres e os demais
desajustados (fora da norma e do esquadro) retornam ao privado porque são úteis
para a produção de mão de obra em alguns hospitais psiquiátricos (note-se, por
exemplo, que muitos pacientes foram explorados nos canteiros de plantação de
hortaliças. O que produziam era vendido para o lado de fora. Algumas
instituições psiquiátricas exploravam a força muscular desses internos em lugar
da obtenção de lucros).
No Brasil, seguindo as rotas de Sérgio Rachman, em sua pesquisa “A interface entre a psiquiatria e a literatura na obra de Lima
Barreto”, entendemos que até a metade do século XIX os doentes mentais eram
internados na Santa Casa de Misericórdia. Devido às condições precárias vividas
pelos alienados, foi construído o primeiro hospital psiquiátrico, o Hospital
Psiquiátrico D. Pedro II, passado após, a chamar Hospital Nacional de Alienados
(HNA). Claro, o modelo de internação seguia os moldes da psiquiatria positivista.
Do mesmo modo, podemos depreender a partir de “Os anormais”, de Michel
Foucault, que o discurso médico psiquiátrico teve grande importância para
confinar quem era tido como fora da norma e por isso “anormal”. Isto é, o
discurso médico-psiquiátrico tinha (ou tem?) o poder de “vida e de morte” que
desqualifica os sujeitos impondo uma vida fora do convívio social. De tal modo,
o discurso de verdade proferido a partir de uma ‘verdade’ cientificista,
legitimado por instituições e especialistas dá lugar adequado para uns e
excluem outros, policiando a vida dos humanos.
Após percorrermos
alguns caminhos com Michel Foucault sobre a história da loucura, sugiro uma
parada nesse “trem de doido”, em um dos ambientes sufocantes no Brasil do
século XX para problematizarmos sobre a violência naturalizada entre algumas instituições
em relação ao insano, o louco, o “anormal”. Esse ambiente psiquiátrico chamado
de Colônia será o acicate para a nossa reflexão. Talvez por ter sido considerado
o lugar do genocídio no Brasil que poucos tiveram notícia, como bem confirma Daniela
Arbex em “Holocausto brasileiro-genocídio: 60 mil mortos no maior hospício no Brasil”.
Após a leitura desse fantástico livro, percebemos que essa instituição psiquiátrica
não difere de outros recintos que veiculam poderes disciplinares e que ainda causam
a morte – física, moral, social de inúmeros cidadãos pelo Brasil afora e que são
capitais para apagar e violentar as suas vidas e memórias.
O Colônia,
segundo Arbex, era o local que
padronizava as pessoas com os seus uniformes azuis e que era temido pelos internos o “azulão”. Talvez
porque eram colocados em situação de guerra os internos que tinham as suas cabeças
raspadas como prisioneiros. Essa prática simbólica da raspagem da cabeça e do
uso do uniforme “azulão” em nosso entendimento funcionam como dispositivos de
invisibilidade social para quem adentra os portões de uma instituição que dita
uma igualdade a todos a partir do tom azul do uniforme. A partir dessa ‘igualdade’
todos são os ‘sem nomes’ que se tornaram números, “monstros” excluídos do
sistema “normal” e racional. Se a função de um hospital psiquiátrico para o
leigo é cuidar, ‘curar’ a loucura e as demais doenças mentais, não foi bem o
que ocorreu ao longo da implementação.
Nesses
“cemitérios de vivos” (como chamava Lima Barreto os hospitais psiquiátricos) os
sofrimentos impingidos aos destituídos sociais (‘doentes mentais’, epiléticos,
alcoolistas, homossexuais, prostitutas ou qualquer pessoa incômoda para alguém
detentor de poder e prestígio social) eram autorizados pelo sistema que, cada
vez mais queria higienizar a sociedade através do confinamento. Aliás, os muros
dessas instituições trazem algo de simbólico para pensarmos: não se pode ultrapassar
esse espaço. Para atravessá-lo, alguém deve possuir credenciais que sinalizam o
ser “normal” em sociedade. Ou seja, o que se percebe a partir disso é que num
passado não muito distante as instituições exerceram o poder disciplinar que
controlou e apagou aos poucos a vida de pessoas transformando-as em anônimas e objetos
do descaso.
Esse
descaso nos faz lembrar Lima Barreto ao ser internado no HNA e relatado em seu
“Diário Íntimo”. É fato que ao adentrar os portões dessas instituições as
pessoas deixariam de ser gente para serem feras, bichos que comem bosta e andam
nus (ARBEX, 2013). Do mesmo modo, essas instituições ao longo de suas práticas
trabalharam para fabricar corpos que seriam dóceis e disciplinados. E para isso,
a medicalização, os eletrochoques, os banhos gelados fariam parte do cotidiano
de quem ousasse gritar e protestar contra esse poder. Nesse sentido, como o
Estado permitiu a morte diária (banalizada) de pessoas nessas instituições?
Como, por exemplo, no Colônia, que tinha uma média de dezesseis mortes por dia
e que esses mortos eram objeto de lucros
de pessoas ambiciosas. Ora, como não saber que nesse ambiente de horror havia homens
esquálidos e totalmente nus, espalhados aos montes de capim que bebiam água de
esgoto para saciar a sede? Então, tudo isso leva-nos a pensar em uma chacina institucional
perversa que mata social e moralmente quem não é a regra, o modelo, o “normal”
daquilo que a sociedade aceita e legitima como tal.
Se como a
morte de tanta gente insurgia um mercado lucrativo que a comercializava corpos
e ossos, é possível pensar que muitos obtiveram ganhos a partir dessa prática
perversa e desumana. Como bem se evidencia em Arbex, um mercado lucrativo tem
de ser autorizado por instituições de poder. E segundo a jornalista, duas dessas
instituições foram importantes Universidades Federais que contribuíram para
esse ‘comércio da morte’ em que corpos foram comprados (cerca de mil oitocentos
e vinte e três), entre os anos de 1969 e 1980. No entanto, com a morte de
tantos, o mercado saturou com a abundante morte dos “anormais”, possibilitando outras
margens de lucros com a miséria humana através da decomposição de corpos em
toneis de ácido porque os ossos tornariam lucrativos.
Se, de
acordo com dados levantados no “livro-reportagem”, a estimativa era de que 70%
dos atendidos não apresentavam doença mental e que bastava sintoma de tristeza
ou uma suposta ameaça à ‘ordem das coisas’ para ser um viajante do “trem de
doido”, porque era tão alta a exclusão da família em relação aos seus? Por que
a negligência e a dificuldade em aceitar o diferente daquilo que a sociedade e
as instituições atestam como aceito? Por acaso essa lógica perversa de higiene
ainda não impera nos dias hodiernos? Será que hoje num discurso ressignificado
o Estado e outras instituições não permitem distintas formas de
institucionalização da miséria como prática desumana? Basta que percebamos quem
são aqueles e aquelas que não queremos ver nos espaços públicos na atualidade.
Parece-nos
que na contemporaneidade a história se reitera em supostos discursos de cura e
inclusão a partir dos novos proscritos que não mais “leprosos” e loucos como
nos advogou Foucault, mas, novos “anormais” que merecem ser diagnosticados e tratados.
Hoje, por exemplo, sob nova roupagem discursiva queremos ‘tratar’ dos usuários
de crack ou “craqueiros” guardando-os, ou melhor, retirando-os do convívio do
público para não ‘enfeiar’ a sociedade. Isto é, a sociedade ainda está pautada
pelas teorias higienistas e amparada pela ‘pura’ intenção de limpar a ‘sujeira’
colocando debaixo dos tapetes (dos espaços privados) aquilo que não é adequado.
A nova ordem seria novos fabricos e assujeitamentos de corpos “anormais” para o
Estado? Se no passado não muito remoto, tivemos como “monstros” os epiléticos,
as prostitutas, os homossexuais, as esposas insubmissas, as meninas grávidas,
hoje os “drogados” têm como destino a internação compulsória? Parece plausível
pensar que, sem o diálogo aberto de diferentes instituições, o silêncio dos
“anormais” sob a ótica da “normalidade” faz com que as vozes sejam abafadas
pelo sistema patologizador que negligenciam direitos e atestam outras vítimas
da instituicionalização.
Deste modo, alguns desses sujeitos se
constituíram e se constituem rebelando-se contra o sistema frio que o Estado
impôs para quem vive fora da norma. Muitos almejaram e almejam existir dentro
de suas diversidades, sem serem obrigados a viver no esquadro, na ‘retidão’ que
padroniza uns a partir de referência atestada por outros. Ainda hoje, muitos homens,
mulheres e crianças deixam de existir como gente, para ser propriedade do
Estado, sob o nosso aval (muitos de nós concordamos porque não queremos
responsabilidades ou pensar sobre elas). O “Holocausto Brasileiro” se corporifica
em ‘terras da razão’ de diversas maneiras. Muitos são mortos diariamente por
nossas empáfias em espaços privados que poucos têm acesso. Esses ‘mortos’ são
teimosos em reivindicar o espaço público como um lugar de existência que os reconhecem.
Assim, o que tenho a reivindicar é um respeitável tributo para os que são
categorizados e patologizados pelas normas como aberrações, “anormais”, loucos,
estranhos, diferentes.
Artigo publicado no jornal Diário da Manhã em 06 setembro de 2013
http://www.dm.com.br/jornal/index#!/view?e=20130906&p=20
Artigo publicado no jornal Diário da Manhã em 06 setembro de 2013
http://www.dm.com.br/jornal/index#!/view?e=20130906&p=20