quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Gratidão ao médico



“Prometo que, ao exercer a arte de curar, mostrar-me-ei sempre fiel aos preceitos da honestidade, da caridade e da ciência”
Esse excerto acima é o juramento de Hipócrates que vem de encontro à nossa tentativa em refletir sobre a medicina na atualidade. Acho importante que nós cidadãos façamos sempre que possível, críticas e ressalvas aos bens públicos oferecidos pelos governantes. Quando não satisfeitos, podemos exercer a escrita como algo que permite a inserção no mundo social do qual fazemos parte porque a linguagem constrói a nossa realidade e a molda em diferentes práticas sociais. Dessa maneira, esse texto não tem o intuito de denunciar nenhum órgão público quanto ao seu serviço. Não tem o intuito de dicotomizar a figura do médico em “mocinho” e “vilão” como se tem evidenciado na contemporaneidade. Pelo contrário, essa escrita evidencia gratidão pela prestação de serviço oferecido pela rede pública de saúde, sobretudo, na prestação de serviço dada por vários profissionais teimosos contra o sistema instituído que validam o juramento de Hipócrates na labuta diária. Aqui os homenageados têm nome. Contudo, poderia ser quaisquer médicos do nosso Brasil que lutam contra um sistema falido sem condições mínimas de dignidade no ofício da medicina. 
Dias atrás, recorri ao médico em função de problema de saúde, indo até o posto próximo ao meu bairro. Nunca havia consultado com esse médico que chegara pouco mais de um ano. O seu nome, Leonardo Driessen Rodrigues Carvalho, prestador de serviço do Programa Saúde na Família (PSF) no Jardim Suíço na cidade de Anápolis. Fiquei impressionado com a organização e limpeza desse recinto. Embora já houvesse prestado serviço para a prefeitura Municipal de Anápolis na confecção dos cartões do SUS em anos anteriores, havia muito tempo que não ia até essa unidade de saúde. Atento, com o meu olhar perscrutador, por sinal, habilidade desenvolvida na reflexão diária de pesquisador, comecei a sondar o ambiente que voltara como paciente e não prestador de serviço de outrora.
Fiquei impressionado ao longo das minhas idas e vindas, com tantas pessoas falando de um médico, jovem e atento à comunidade local. Ao indagar algumas pessoas sobre esse médico, as pessoas me confessavam que adorava esse profissional porque ele era atencioso, gentil e excelente pessoa. Ora, fiquei pensando sobre essa suposta atenção, que até então não havia confirmado para mim. Seria diferente o que se ouve e propaga no senso comum? De que os médicos são impessoais e frios? Sim, seria.  Então, após ouvir essas polifonias ressoantes, pude perceber que as pessoas querem se sentir valorizadas. Constatei nesse breve momento, que as pessoas ansiavam ser reconhecidas com as suas mazelas e tratadas como cidadãs que pagam os seus altos impostos para alimentar a máquina pública no Brasil. Assim, nesse recinto em Anápolis, o que ocorria é a valorização do ser humano. Inferi que as atendentes desse posto têm também como incumbência mitigar o desumano que muitas vezes presenciamos em diferentes clínicas e hospitais (públicos e/ou privados) nas grandes cidades e nos interiores.  Os pacientes ali são tratados como humanos. São seres que, por diferentes motivos se sentem fragilizados por algum mal e/ou doença que bate à porta e que almejam a cura. Cheguei à conclusão que o respeito e a prestação de serviço ética dada pelos profissionais da saúde que ali estão são capitais para que os pacientes se sintam valorizados, cuidados e amparados. Assim, constatei que esse jovem médico, cujo nome é Leonardo Carvalho, atende as pessoas com respeito e tratamento humano, como se confirmou nas vozes que ecoaram até mim enquanto estive passando por ali em retornos de consulta. Queria ouvir aquelas pessoas e sai da recepção para sondá-las enquanto aguardava a minha vez. Embora não fosse nenhuma pesquisa etnográfica, queria perscrutar e entender esse processo.  
Lembrei no momento que ouvia alguns pacientes no posto, da minha querida amiga Aline Neto de Almeida, médica neurologista em Goiânia. Lembrei-me de suas agruras diárias para o sonhado exercício da medicina. Foram tantas lutas para se formar médica. Foram tantas horas de sua vida dedicada para forma-se com qualidade. Noites de estudos e excessiva carga de motivação para ser algo que escolhera. Notei que o mesmo olhar que circundava Aline, rodeava Leonardo, cercava outra médica também da qual pude conhecer nesse mesmo posto de saúde: Simone Afonso Boasorte, profissional à época do PSF. Os olhares desses profissionais doam atenção, respeito e dedicação aos seus pacientes. Para mim esses profissionais evocavam força e equilíbrio, força motriz para o mitigo da dor do outro que ia além de uma prescrição de remédios.
Posto isso, a atitude de prestar serviço de saúde para a comunidade com o mínimo de decência e respeito deveria ser para nós algo natural e não fora do comum. Infelizmente, sabemos ao transitarmos pelos grandes centros de nosso país e porque não em nossas cidades do estado, que isso não acontece. Ainda que o meu olhar seja limitado para saber as causas desse processo de impessoalidade e banalização da vida humana, percebo que há um negligenciamento por parte de alguns gestores públicos para a efetiva prestação de qualidade da nossa saúde. Vivemos tempos em que a sociedade vive num “mundo em descontrole”, como bem afirmou Antony Giddens. Habitamos um mundo caótico, ou numa concepção baumaniana, um mundo marcado pelas relações líquidas em que os descartes tornam-se valorizados para a convivência humana. São os tempos líquidos, tempos esses que coisificam o humano e alienam o processo do convívio social e do processo de exercício das profissões. Com a saúde não seria diferente: médicos (e pacientes) estressados, coisificados, mal pagos, sem condições mínimas de atuação profissional. Pacientes deixados como animais nos corredores de hospitais para o ‘abatimento social’. Muitos deixarão de existir não porque os médicos falharam, mas, porque o sistema falhou e negligenciou em suas políticas públicas de saúde o mínimo para o cidadão. Assim sendo, pude perceber que o caos das relações humanas é subvertido por esses médicos que teimam oferecer algo a mais que um simples olhar técnico e prescritivo aos seus pacientes. É sovertido esse caos porque atendem aos pacientes olhando nos seus olhos, vendo-os como pessoas humanas. Atentos não somente ao ser biológico, mas, ao ser psico-bio-socio-cultural que somos.
Diante do que analisei em relação à atual conjuntura dos médicos no país, algo me deixou pensativo em relação ao programa PSF e ao profissional Leonardo Carvalho e a tantos outros que possam existir por aí. Sem o devido investimento neste profissional, a comunidade local pouco poderá usufruir. Primeiro que, quem é bom naquilo que faz quer ser reconhecido também como tal em nível salarial. Quem quer o respeito como profissional exige condições mínimas para suturas e feitura de curativos, remédios de menor complexidade acessíveis para a população. Ou seja, os médicos e demais profissionais querem o básico de toda prestação de saúde com o mínimo de qualidade. Segundo, quem oferece o melhor quer o melhor como retorno. Portanto, constato, após voltar três vezes no Jardim Suíço, que a comunidade atesta a prestação de serviço humanizada dada pelo médico em questão. No entanto, sem investimento e políticas públicas de permanência desse bom profissional médico a sua saída futura poderá ser inevitável. Como já aconteceu com a médica Simone Boasorte e tantos outros em nossa cidade.
O que quero dizer com isso? Quero (re)afirmar a necessidade de se investir no profissional médico que trata os seus pacientes como seres humanos, com atenção e respeito. São esses profissionais que a sociedade necessita valorizar e que o prefeito tem de ter participação. Os profissionais que prestam serviço público de qualidade deveriam ser os melhores remunerados porque o país, o Estado, os municípios, a sociedade, ganhariam com o bem estar dos cidadãos e estariam reconhecendo o direito alienável à saúde tão preconizado pela Constituição Federal em seu artigo sexto. Afinal, não basta que pague bolsas de estudo e permanência pelo país afora sem que haja condições mínimas de atuação do médico na comunidade local. Defendo por exemplo, a permanência do profissional (professor, médico etc.) próximo à comunidade. Os laços que se estreitam estabelecem vínculos importantes na compreensão do ser humano que vir a adoecer ou ter dificuldades de aprendizagem. No entanto, parece que os bons profissionais se não bem reconhecidos, fogem dessa comunidade rumo a outros centros/setores que os valorizem. Há uma política instituída do desafeto em nossos setores públicos na medida em que não há a possibilidade de profissionais serem concursados. Portanto, os contratos temporários de prestação de serviços abarrotam o serviço público sem oportunizar o acesso ao profissional competente assumir o concurso público.
 Por fim, com a mesma leveza e atenção dada a mim e a tantos ouros pacientes dessa comunidade da qual faço parte, escrevo esse texto para materializar a minha gratidão por ainda haver profissionais dedicados em seu ofício escolhido. Profissionais da envergadura de Simone Boasorte, Aline de Almeida, Leonardo Carvalho, quero aqui, que a vozes dos pacientes anônimos se entrecruzem à minha para dizer que temos orgulho da profissão escolhida por vocês. Leonardo Carvalho, que a sua prestação de serviço continue indo além do simples olhar técnico. A sua dedicação pelo que constatei, vai de encontro aos moldes avançados de outros países que preconizam ouvir o paciente, tratá-lo como humano (de forma pessoalizada). Sabemos que, para compreender e curar uma patologia é necessária a compressão do humano como uma teia complexa de relações psicossociais. Afinal, somos mais que unidades biológicas. Somos seres psíquicos, culturais, sociais e espirituais. E como tais, somos seres humanos com histórias, vivências e culturas localizadas em tempos e espaços diferentes. Obrigado pela prestação de serviço na comunidade do Jardim Suíço em Anápolis. Você é motivo de orgulho de todos nós que convivemos nessa jornada social diária.  
Texto publicado no Diário da Manhã/Opinião Pública em 23out.2013. Disponível em: <http://www.dm.com.br/jornal/#!/view?e=20131023&p=24>

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