É possível haver uma
“cura gay”? Por acaso não se cogita a cura a partir de algo que está doente?
Quais são as credenciais dadas que atestam o poder de cura da sexualidade do
‘outro’? São perguntas que ressoam e inquietam-me diante do Projeto de Lei do
presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, o deputado Marco
Feliciano (PSC-SP), reflexo de outras tentativas como a do deputado federal João
Campos (PSDB-GO) e da psicóloga paranaense Marisa Lobo. Essas tentativas equivocadas
e fanáticas acicatam essa escrita, cujo objetivo é contestar e desestabilizar
os conceitos de norma(lidade) e de heteronormatividade presentes na sociedade .
Para isso, acho relevante nos caminhos desse texto, demonstrar de forma breve,
como a igreja e outras instituições são capitais para a legitimação sexual do que
é aceito e tido como “normal”, capazes de promover uma subalternização do que é
recusado e tido como “anormal”. Para compreendermos como algumas práticas
sociais se configuram ao longo do tempo histórico e do espaço através de atitudes
discriminatórias, precisamos retroceder a alguns séculos. Para isso, começamos
pela construção do “sodomita pecador” (século XVIII) e em seguida para a construção
de um homossexual patologizado (século XIX) em convergência com a
contemporaneidade.
Antes da figura do
sujeito homossexual, temos o sodomita categorizado pela igreja como aquele que
carregava o pecado e a mácula na alma porque estava adequado a uma sexualidade
antinatural que contrariava a natureza. Esse indivíduo era considerado o
transgressor da matriz nuclear da procriação. O “crescei e multiplicai-vos” era
subvertido na medida em que não se tinha o sexo como reprodução e perpetuação
da espécie. Para a igreja essa prática subversiva foi considerada uma afronta
moral que fora satanizada e controlada. Nota-se que o sexo era feito somente
para cunho da reprodução e o sodomita tornava-se um transgressor porque ia além
da imposição clerical, uma vez que buscava o prazer sexual. Por isso, esse ‘pecador’ era o que tinha a
sexualidade descrita, vigiada, normatizada, regulada, demonizada (pela igreja,
e família). Novos dizeres foram criados sobre esse comportamento “estranho” à
ordem natural e algumas famílias em desespero deixaram os seus filhos serem
‘tratados’ pela igreja através de orações, penitências e expurgo de demônios.
Nesse interim,
avançando os séculos, precisamente XIX, quem passa a governar, higienizar e
punir a sexualidade é o Estado e as Ciências Médicas, corporificada, sobretudo,
na Psiquiatria e Psicanálise. De acordo
com o francês Michel Foucault em seus estudos sobre a sexualidade, especialmente
no primeiro volume da “História da sexualidade” e em “Os Anormais”, o sujeito homossexual é algo inventado no
século XIX e que nasce discursivamente através das instituições de poder como a
psiquiatria. Para Foucault, a partir da publicação do artigo Archiv für psychiatrie und nervenkrankheiten
(Arquivo para doenças nervosas e psiquiatria), de autoria do psiquiatra
Carl Wetsphal em 1870, materializa-se um sujeito que passa a ter a sua
sexualidade regulada e controlada pelos “juízes” (psiquiatras numa concepção
foucaultiana) detentores do poder e saber. Nesse sentido, os “juízes”
sentenciavam suas teorias e categorizavam o ‘outro’ como aquele detentor de uma
sexualidade doente que necessitava tratamento. Nesse contexto, o discurso
médico-legal amparado pela suposta ciência reiterava teorias capazes de
atrocidades impensáveis, como por exemplo, extirpar os testículos dos
“desviantes”, ou, o uso de eletrochoques nos hospitais psiquiátricos.
Acreditava-se que havia
uma ‘falha’ hormonal nos testículos capaz de influenciar na sexualidade, cuja
causa favorecia o surgimento do homossexual (por isso, esse termo relacionava
ao discurso médico para categorizar o doente da sexualidade desviante). Podemos
dizer que era o momento da caça às bruxas, pois quem fosse pego sofreria a dor
de ter sido contraventor da ‘masculinidade’ obrigatória. Havia um policiamento
do sexo e de tudo aquilo que o lembrava. As famílias tinham a ‘missão’ de
controlar, vigiar os seus filhos para detectar possíveis desequilíbrios no
comportamento. Se a homossexualidade fosse detectada pelo Estado no núcleo familiar
os pais eram condenados. A sentença seria dada de acordo com a gravidade e
intensidade desse comportamento que, antes sodomita, regulado pela igreja (comportamento
pecaminoso e antinatural), agora “desviante” e “anormal” (gerido pelo discurso
médico o comportamento doentio).
As condenações variavam
desde o pagamento de multas para o Estado ao confisco dos bens. Cria que a
família era também portadora de ‘algum erro’ capaz de mudar a sexualidade do
filho. Nesse caso, perdia-se tudo e algumas famílias abastadas ‘sepultavam’ os
seus pupilos em clínicas psiquiátricas, numa tentativa higienista, capaz de limpar
da sociedade os “anormais”. Isto é, os “monstros humanos” criados pelas instituições médicas e jurídicas (O Direito também
exerceu o poder para regular qual sexualidade deveria ser aceita e tida como
“normal”). Portanto, podemos afirmar que o termo homossexual estava marcado por
uma prática sexual totalmente demonizada advindo do século XVIII que se
entrelaçava ao discurso sexológico, médico-legal, psiquiátrico e higienista, sendo
parte constituinte de um discurso patologizador no século XIX até na
atualidade. Diante disso, indago: Quantos “anormais” temos hoje nas clínicas
psiquiátricas? Parece que novos “anormais” são (re)construídos pela linguagem como
aqueles que não podem ser aceitos (vistos) no espaço público e por isso, devem
ficar resguardados (no espaço privado) longe do convívio ‘humano’.
Transitando pela
contemporaneidade, percebemos que alguns discursos reverberam na tentativa de
construir um sujeito doente, pecaminoso e por isso, deve ser tratado e/ou
expurgado. Daniel Borrillo, professor da Universidade de Paris, em seu livro “Homofobia
- História e crítica de um preconceito” confirma que a tentativa de cura dos “homossexuais”
é algo antigo e que corporifica uma homofobia social e institucional na
sociedade marcada pela heterormatividade. Dessa maneira, nos faz refletir que, ao patologizar
uma identidade sexual a partir de uma norma e um modelo, negligencia-se os
direitos de outros. Institui uma prática perversa de ajustamento que favorece
uma homofobia aceita e por isso torna-se naturalizada. Promover uma suposta
“cura gay” a partir de normativas é deixar que o Estado valide a homofobia
social e isso é um recrudescimento da violência a partir da condição sexual que
fere a Constituição Federal ( CF) e os Direitos Humanos. Deste modo, quando
queremos usar da norma, num sentido de esquadro, como nos esclarece George
Canguilhem em “O normal e o patológico”, dizemos quem é o aceito, o “normal”. O
reconhecido é como se fosse algo que deve ser nem para a esquerda e nem para a
direita, mas a justaposição do ajustado e do centro. Tudo que não for ajustado
para o ‘correto’ e esquadrado será “anormal”. Assim, ao pensarmos nesse
mascaramento perverso e violento que se estabelece através da linguagem,
colocamos uns como superiores e outros como subalternizados e por isso, devem
ser excluídos.
Ao refletirmos nessa
normatização da sexualidade, percebemos que a sociedade é marcada pela “heterossexualidade
compulsória” como afirma a pesquisadora Judith Butler. Uma das contribuições da
sua teoria é a possibilidade de descontruir a matriz binária de homem versus mulher e a possibilidade de
problematizarmos a sexualidade do ponto de vista da construção social e
discursiva como algo que construímos aos outros e a nós mesmos através de
discursos. O que problematizo aqui não é a questão da heterossexualidade ser
compreendida como algo natural, mas a maneira que esta é (re)produzida e
reiterada como modelo e norma na
sociedade. Assim, convém pensar em como as decisões políticas, sociais seguem
essa matriz como princípio da normalidade? Por que queremos nos apropriar do
sexo dos outros? Para controlá-los,
discipliná-los e governá-los? Foucault deixa-nos claro que o sexo não foi algo
reprimido como se sugere, mas, que foi dito e produzido sob diferentes maneiras
em distintos tempos históricos.
A escola, a família, a
igreja, o Estado, ou seja, entendidas como instituições, regulam através de
seus ritos de norma a sexualidade alheia. Na medida em que constrói na
sociedade o padrão, quem é a referência, recusamos quem não é o modelo, o
esquadro. Passamos a reconhecer o ‘outro’ como forasteiros e criamos sujeitos
destituídos de direitos que são subalternizados por suas condições sexuais.
Ora, querer a “cura” da condição sexual do outro, é partir da premissa que
existe uma matriz única dada pela natureza. Instituir uma suposta “cura” e/ou
correção é violentar o humano porque é desumano. Como bem se posicionou o Conselho
Federal de Psicologia (CFP), essa proposta de “cura gay” é um retrocesso à resolução
de nº 001/99 de 22 de março de 1999, uma vez que a resolução considera que a
“homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio e nem perversão”. Por
falar em perversão, esta é uma herança freudiana que construiu o sujeito
homoerótico como o “pervertido”.
Acho importante a
problematização da sexualidade como algo cultural, (re)construído a partir de
diferentes lugares históricos (sociais)
e institucionais. A sexualidade não é algo que devemos categorizar,
compartimentar como se fosse uma massa moldável e limitada, “a sexualidade
livre é a morte que ressurge para a vida”. Arrisco a dizer que a tentativa em
rotular os outros em lésbicas, heterossexuais, homossexuais, travestis,
transexuais (que ainda são vistas como seres patologizados que carecem do aval
psiquiátrico para existir socialmente) torna-se inútil, uma vez que estudos sob
distintos olhares revelam a plasticidade da sexualidade humana, sendo
impossível demarcar a partir da matriz binária homem e mulher, os jeitos de ser
homem e ser mulher, tendo em vista que há vários jeitos de se viver a
masculinidade e a feminilidade que nascem em diferentes momentos históricos e
sociais. Por conseguinte, infelizmente tenho acompanhado em redes sociais uma
heteronormatização da sexualidade imposta de forma violenta. Isso reflete de
certa forma o desrespeito à diversidade humana, ao convívio entre a diferença e
ao reconhecimento da alteridade. Tenho lido também na opinião de alguns
psiquiatras, psicanalistas e psicólogos (Silas Malafaia e Marisa Lobo) ecos do
século XVIII e XIX que demarcam uma sexualidade “normal” e invisibiliza uma
sexualidade tida como “anormal”. Essas práticas são perigosas, porque
patologiza, psicanaliza e psicologiza, ferindo o direito da dignidade humana
defendido no artigo primeiro da Constituição Federal.
Vivemos tempos em que
as dúvidas e as certezas dadas devem ser questionadas. É tempo de
desestabilizar o que foi instituído como verdade, porque quem acredita detentor
dela limita e excluem as outras possibilidades. O tempo da contemporaneidade
nos possibilita descontruir o tradicional e questionar as instituições dadas
como naturais. Precisamos propor novas formas de pensar a sociedade que vivemos,
pois novos arranjos sociais se materializam e disso não podemos nos furtar. Afinal,
o conceito de família nuclear já não responde o mosaico que nos imbricamos
nesses tempos atuais.
Portanto, tenho certeza
que existem coisas mais importantes em vez de supostamente incitar a “cura” das
práticas afetivo-sexuais do cidadão. Temos os hospitais que estão cada vez mais
sucateados que promovem diariamente aos pacientes uma morte social. Temos docentes,
alunos e alunas reféns de uma educação caótica somada a inúmeros problemas
sociais a serem vencidos. Pensemos um pouco e notaremos que o salário dos
deputados e de toda engrenagem social é custeada através do pagamento de
impostos. Quem paga são os cidadãos homens e mulheres, lésbicas, gays,
travestis, transexuais e heterossexuais. Assim, ao proporem a “cura gay”,
sugiro a cura da hipocrisia, da arrogância, da estupidez, da corrupção, da
falta de respeito ao outro, da falta de urbanidade que permeiam as nossas
instituições e relações, porque assim como Foucault, eu me recuso a aceitar que
um indivíduo possa ser identificado com e através de sua sexualidade para ser
normatizado.
Texto publicado no jornal Diário da Manhã no dia 02/07/13
http://www.dm.com.br/jornal/#!/view?e=20130702&p=24
http://www.dm.com.br/jornal/#!/view?e=20130702&p=24
Nenhum comentário:
Postar um comentário